domingo, dezembro 03, 2006

Alaíde Lisboa 2

O CASAMENTO


Alaíde Lisboa de Oliveira

Aos trinta e um anos, o Professor Lourenço resolveu casar-se. Casamento não estivera muito nos seus planos. Mas quando conheceu uma Professora-Educadora, como ele, tinha de interessar- se seriamente por ela, e ela por ele, e lá veio o final feliz.
Escreveu, na época, a um amigo e mestre: "Pretendo definitivamente casar, no dia 22 de agosto. Acerto mais esta conta da vida. E espero um acerto certo". E lembrava a amizade do mestre, “... agora que estava resolvido a um passo tão conseqüente e definidor, tão sério e promissor ...”. Ao mesmo professor já dissera na ocasião do noivado que tinha certeza de que o mestre ia aprovar sua escolha.
Os preâmbulos: a jovem chegava do Rio de Janeiro, onde passara os anos de legislatura de seu pai, Deputado Federal. A Revolução de 30 levara a família de volta para Lambari, sua terra de origem. Em Lambari, assumiu a cadeira de Professora do Grupo Escolar. Convidada para fazer o Curso de Aperfeiçoamento Pedagógico de Minas Gerais, veio para Belo Horizonte. No princípio ficara em casa dos tios, até a chegada da família, quando o pai foi eleito Deputado à Constituinte Mineira, em 1934-35.
O professor Lourenço era amigo dos tios e primas em cuja casa se hospedara a professora Alaíde. Ela chegou de viagem num dia, e no dia seguinte o Lourenço veio visitar a prima recém-vinda. Parece que desde este primeiro encontro uma impressão forte marcou os dois personagens. E as visitas se sucediam e as trocas de idéias se prolongavam.
Seriam afinidades, seriam coincidências nos interesses, seria necessidade afetiva, verdade é que, a cada momento, um surpreendia o outro nas revelações de pensamentos, sentimentos, juízos, experiências culturais.
A grande aproximação: ele formado no Caraça, orientação religiosa segura, tendências culturais européias, sobretudo francesas, amor aos estudos, à língua, contatos com escritores portugueses e brasileiros em livros e antologias bem selecionadas.
Ela vinha do Colégio de Sion, de Campanha, um Caraça mirim, mas que dava às jovens os mesmos gostos e desenvolvia com delicadeza os pendores intelectuais. Religiosas francesas, que lecionavam ciência, em francês, despertavam mais apego ao idioma do que às ciências. O Sion sem o latim, que faz sempre falta à cultura, mas que, em compensação, debruçava-se sobre a gramática histórica e garantia a aprendizagem consciente da língua. Ela sentia a solidez da cultura dele, e mesmo a superioridade na erudição assimilada. Mas ele sentia a vivacidade da jovem, na rapidez de absorver o que era novo ou diferente.
Outras aproximações: o Lourenço era poeta, dizia que todo homem é poeta aos vinte anos, ele foi além dos vinte, mas mesmo assim foi deixando a poesia pelos seus estudos lingüísticos, deixando de fazer poesia: e, nos estudos de poesia e de estética, buscava sempre a força lingüística. Como poeta, viveu intensamente a fase modernista e familiarizou-se com todos os seus expoentes: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos Drummond, o grupo da Revista Verde, de Cataguases.
Alaíde tinha uma irmã e um irmão poetas: a grande Henriqueta Lisboa e o ilustre José Carlos Lisboa, e ouvia desde a juventude falar de poetas e poesia, e freqüentou conferências e lia daqui, dali, e assistiu ao lançamento do Manifesto, de Graça Aranha, ouviu muita discussão sobre poesia antiga e moderna, o passado e o presente, e tinha uma visão geral dos acontecimentos literários.
E, assim, os conceitos, as opiniões, as criticas, e a criatividade de Lourenço eram assimilados por ela, e ambos se entendiam bem nas trocas de idéias.
Os dois, ao deixarem o Colégio do Caraça e o Sion, se dedicaram à leitura. E os livros de sucesso na época eram lidos por ele em Belo Horizonte, e por ela, no Rio ou em Lambari.
Sobre que livros conversavam? Os que estavam em evidência no momento e os evidentes do passado. E conversavam muito sobre os nossos poetas.
Naquela hora, Duhamel aparece nas livrarias do Brasil e, assim, Journal de Salavin era pretexto de entretenimento entre o par de jovens. Em Mauriac, uma dúvida para ela: por que Desqueyroux, o nome que acompanhava o de Thérèse tem o s pronunciado claro, e não omitido como em outras situações da língua francesa? Tudo era motivo de troca de idéias entre os dois. E desfilavam os escritores: Stefan Zweig, Emil Ludwig, Xavier de Maistre, Maurois, Maritain, Proust, Pirandello ...
Quando chegou a vez de Papini, ela vibrou: era a sua grande predileção; que valeu a ela um interesse maior pela língua italiana. Ele tinha lido Papini no original: o italiano era fácil para quem dominava tanto o latim, o francês e o português, e para quem já lera Dante no original. É bom lembrar o pormenor expressivo de Lourenço: não deixava que se pronunciasse Dante como se o e fosse i. Esse Dante(i) seria o sapateiro da esquina; o Aleghieri era DantE.
Havia uma diferença no ler dela e dele. Para ela, a leitura tinha função quase exclusivamente lúdica. Era o interesse, ou a emoção, a participação. Vivia as impressões de fatos e idéias, sentia os personagens, vislumbrava o ambiente. Para ele, a leitura além da função lúdica, emocional, se revestia de satisfação intelectual. Analisava relação de forma e conteúdo, de significado e significante, valorizava o estilo de cada escritor, as nuances diferenciais, a profundidade dos enunciados, os recursos verbais. Se se tratasse sobretudo de poesia, valorizava as palavras. Pressentia tudo que se encaminhasse para a beleza literária de cada obra. Ela progrediu muito nesse convívio de cultura. Colaborava, com que eficiência, com a namorada na tradução de textos de livros em inglês, geralmente americanos, para distribuição de cópias ou resumos às colegas da Escola de Aperfeiçoamento. Como era cuidadoso nas traduções, no respeito às idéias do autor, à língua original e à língua portuguesa! Com o correr dos anos, ele se definiu mais para as letras, língua, literatura, lingüística, latim, Direito Romano, mas ainda se ateve à pedagogia, porque era essencialmente Professor-Educador.
Ela se definiu mais pela pedagogia, mas ainda se ateve às letras, porque era também professora de Didática de Português e Literatura.
Casaram-se e tiveram quatro filhos, com intervalos pequenos, e a esposa dedicou-se às crianças, à casa, ao marido. Não tinha tempo para novas leituras, nem mesmo para acompanhar o movimento intelectual em evidência no Mundo. Um dia, o marido lhe diz sorrindo: "Casei com minha mulher, que era intelectual, e agora ela está ficando analfabeta." Disse sorrindo, mas havia uma crítica. E aquelas palavras foram novo estímulo para a esposa que passou a procurar momentos de folga para pôr a vida intelectual em dia, para crescer e conviver espiritualmente com ele. E ela acrescentava: "Não para alcançar o nível dele, que é muito alto, ele tem cultura, erudição, tudo tão lastreado, tão sólido, mas para admirá-lo melhor." Ela se lembrava, ainda comovida, de uma noite em que discutiam sobre textos de leitura e ele, de leve, tocou o indicador na testa da então namorada e disse: "Esta sua cabecinha é notável mesmo."
Ambos se encontravam também nos cuidados educativos. Ela, embora tenha passado no Rio vários anos de juventude, guardava os hábitos de formação de família mineira, aliás não muito diferentes dos da família tradicional do Rio. No momento em que conheceu o namorado, depois noivo, depois marido, morava em Belo Horizonte, como já disse, em casa dos tios, que vinham do interior, da mesma cidade de origem da família.
Apesar de estudante da Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico, para professores, apesar da autonomia, nos estudos e nas decisões, ela guardava as diretivas familiares: uma moça não vai sozinha com um rapaz ao cinema, ao teatro, a festas. Uma moça não anda sozinha de automóvel com um rapaz. E o Lourenço compreendia tudo muito bem.
Ambos gostavam de ouvir música, e por isso mesmo iam a concertos juntos e lembravam de outros concertos, quando ela no Rio, ele em Belo Horizonte. O primeiro concerto de que participaram juntos foi de Rubinstein, no Teatro Municipal, da Rua Goiás com a da Bahia. Ele estudante de Direito, ela estudante de Pedagogia. Como bons estudantes ficavam nos bancos das galerias. Talvez nunca Rubinstein tenha penetrado tanto nos corações dos jovens, como naquela noite. Também a Música tinha um sentido diferente para ele e para ela. Ele participava de Música tanto intelectual, como emocionalmente. Ela era todo sensibilidade. Esquecia o valor técnico e artístico e se integrava na comunicação do jogo de sons. Estudara um pouco de piano, chegou a tocar a Serenata de Schubert, sentimentalmente, mas não mergulhou, como ele, nos estudos teóricos de música. Mas ambos se entendiam no prazer de ouvir música, fosse de Beethoven, fosse de Luiz Gonzaga.
Como corresponder à expectativa de um marido-mestre? Quando ela iniciou a carreira universitária, como Professora Assistente de Didática, na Faculdade de Filosofia da Universidade Católica, preparou-se durante alguns meses lendo, relendo, estudando, consultando obras, organizando programas e foi dar sua primeira aula. Foi bem sucedida, impressionou satisfatoriamente aos alunos. Mas chegou a casa abafada, e disse ao marido: "Dei hoje o programa todo, transmiti minhas experiências e leituras numa aula total. E agora, José?" E ele respondeu tranqüilo: "Separe os itens da aula de hoje e vá desenvolvê-los em profundidade em cada aula futura." E a lição valeu.
Ambos fizeram carreira universitária e foram bem sucedidos. Ambos atingiram a Cátedra, e ambos, ao se aposentarem, receberam da UFMG, por proposta, cada um através de sua Faculdade, o título de Professor Emérito. Ele sempre antes, ela como que seguindo seu exemplo. Ele sempre deu muita força e muito apoio à esposa na carreira profissional, até o final. Já doente, com dificuldade de locomoção, foi assistir à outorga do título de Emérito da esposa, e participou das homenagens.
É difícil dizer como se comportam marido e mulher, como convivem, como se entendem, como fazem a vida em comum.
Lourenço sempre foi o chefe, mas não impedia que a esposa e os filhos se sentissem autônomos.
Certa vez, a Professora Helena Antipoff aplicou na família, pai, mãe e quatro filhos o teste Minhas Mãos e teve oportunidade de fazer um estudo especial daquela amostragem publicada em revista de Psicologia. Os filhos eram ainda colegiais. Cada um dos seis membros da família era ele próprio e cada um revelou sua autonomia na redação. A análise demonstrou mesmo a independência vocabular, com apenas coincidência de um vocábulo significativo: não.
Se alguém tentasse fazer uma análise das relações de esposo e de esposa, talvez não chegasse à conclusão que ele mesmo definiu certa vez, como Professor: "Nas coisas substantivas nós estamos sempre de acordo. Há algumas divergências nas adjetivas."
Quais seriam as substantivas? os ideais de educação dos filhos; os princípios morais; a crença em valores absolutos; a formação cristã; a predominância das forças espirituais sobre as materiais; amor ao livro; valorização relativa dos bens materiais; responsabilidades nas funções e obrigações profissionais.
Adjetivas: café mais forte ou mais fraco; menor ou maior tolerância ao barulho; livro no lugar ou fora do lugar; alguma preferência de programa de televisão; menor ou maior rapidez no aprontar-se; ir ou não ir a uma sessão social; usar essa ou aquela gravata...
Viviam marido e mulher em constante atividade intelectual, lecionando em colégios e universidades, fazendo palestras, escrevendo artigos em revistas e jornais, publicando livros. Mas nunca houve entre eles, o que costuma acontecer, espírito de concorrência, cada qual mais cioso de suas responsabilidades e de suas possibilidades. Ela sempre admirando muito nele a segurança de conhecimentos, a erudição fora do comum, a lógica nas idéias, a profundidade nas análises, o belo domínio de forma de expressão, a penetração nos recônditos da língua. E ele apreciava também a agilidade mental da esposa.
A esposa sabia que o marido era um intelectual acabado e consumia como aluna-colega a riqueza da experiência cultural do esposo. Ela progredia ao lado dele. Logo que se casaram, ele lia os trabalhos da esposa antes da divulgação, questionava-os, às vezes mesmo fazia um acréscimo aqui ou ali, uma proposta de substituição. O tempo passava e, certo dia, ela reclamou: "Você não está revendo meus trabalhos para publicação, como fazia antes." E ele respondeu, sorrindo: "Não precisa mais..."
Certa vez, a esposa tinha feito um discurso em Palácio, defendendo, junto ao interventor Júlio de Carvalho, a criação da carreira de magistério (aqui um intervalo: defendia-se a carreira como estímulo de estudo, esforço intelectual, maior preparo de cada professor. Os vencimentos, só por acréscimo. Não são eles que fazem o bom professor. Por isso mesmo, a Associação de Professores criara um Curso, gratuito, de Aperfeiçoamento para seus associados, em função do ensino-aprendizagem: Português Básico, Matemática Básica, Religião Básica, e a freqüência era surpreendente! E os objetivos eram perseguidos e iam sendo alcançados. O interventor se convenceu, diante daquele número de professores, no salão do Palácio, não no saguão ou na rua, diante da segurança da argumentação). Deixando esse parêntese, no dia seguinte ao encontro em Palácio, o Lourenço chega a casa, sorridente e diz à esposa: "Um meu colega, presente à reunião de ontem, elogiou seu discurso e perguntou se eu é que o teria escrito para Você. Quando respondi que não, ele insistiu: "Mas você colaborou e reviu?" E Lourenço: "Nada, ela escreve muito bem, sozinha", e brincou: "Se você precisar de algum discurso, é só pedir que ela faz pra você..." E ela sorriu feliz com a confiança do marido.
O Lourenço sempre foi reservado em suas manifestações de afeto: o importante era que a esposa soubesse que ele gostava dela. Certa vez, houve um banquete em homenagem ao João Lisboa, pai da esposa, e o genro Lourenço ficou a seu lado. No dia seguinte, o João Lisboa vai falar satisfeito com a filha: "Alaíde, tenha a certeza de uma coisa, seu marido gosta muito de você. Ontem elogiou muito você, fez referências excelentes a seus atributos, num entusiasmo grande e prolongado, e devem refletir seu íntimo, porque ele falou sob ação de champagnes e vinhos, que é quando a gente diz a verdade: in vino, veritas ..."
Nunca se esquecia do aniversário de casamento. A esposa, também não. Mas certa vez, onze dias antes, nasceu-lhes o quarto filho, uma menina. Ambos muito alegres festejavam o nascimento da criança. A mãe, preocupada com os primeiros cuidados da recém-nascida, não via os dias passarem. No dia 22 de agosto, ainda na porta do quarto, o marido lhe dá um presente, um colar de ouro trabalhado. Como a oferta foi silenciosa, presumindo-se o entendimento, ela que se esquecera pela primeira e única vez do aniversário do casamento, entendeu que o presente era um agradecimento de Lourenço, porque lhe dera mais uma filha.
No dia 22 do ano anterior, deu à esposa uma edição de Os Lusíadas, organizada por Lencastre, toda anotada, estrofe por estrofe, reproduzida ao lado, na ordem direta, seguida de comentário histórico-analítico. Tudo era estímulo, para que a esposa não se esquecesse de ser intelectual, apesar dos afazeres domésticos.
Depois de mais de trinta anos de casados, a esposa fez uma viagem e passou fora o aniversário de casamento; deu então um telefonema interurbano ao marido e perguntou-lhe de início: "Você sabe que dia é hoje?" E ele respondeu imediatamente: "Está escrito na aliança" ... Pena que ela não pudesse ver aquele sorriso lúdico que acompanhava suas respostas sempre originais.
O nascimento do primeiro filho implica tanta coisa nova que deixa o casal aturdido sem saber de que lado virar-se, tanto interior como exteriormente. Quando nasceu a primeira filha de Lourenço e de Alaíde, os pais nem sabiam como estavam reagindo, no meio de uma alegria cheia de sustos e preocupações. Um sorriso de felicidade no rosto daquele pai, um olhar de surpresa, uma expressão de preocupação. Ele sentia que a sua vida recomeçava e continuava naquela filha e iria continuar nos outros filhos naquele desdobramento que liga o homem à vida prolongada. Eu sou eu e meus pais, eu sou eu e meus filhos. As gerações se estendem.
O batizado se faria logo. E o nome? A mãe propôs Abigail. Era o nome de uma irmã muito querida, que morrera de moléstia cardíaca, aos vinte e poucos anos e deixara uma filha que se chamava Maria Antônia e que continuou a graça, a beleza da mãe, tanto no fisico como no espírito. O Lourenço, que não conhecia a primeira Abigail, conhecia-lhe a pequenina e encantadora filha, aprovou, feliz, o nome que se prendia à Bíblia.
A segunda filha ia ter o nome da mãe de Lourenço e de nossa Mãe do Céu: Maria. A pequenina Abigail ia crescendo em graça e inteligência. Novinha, chorava um pouco e o pai ajudava a acalentá-la. Sua maneira de acomodar a filha nos braços era original: a cabecinha apoiada na mão direita, o corpo ao longo do antebraço, como se fosse um berço, e a mão esquerda garantindo o espaço e a segurança do antebraço. E assim os olhos do pai pousavam, numa contemplação feliz, naquele rostinho que serenava até adormecer. A pequenina, uns três meses depois, descobriu um berço em que se acomodava tranqüila: o colo da mãe, na baratinha Ford do pai. Uma volta na cidade, o sono lhe vinha logo e era só o cuidado de levá-la para o verdadeiro berço. Quem diria que ali estava a futura pós-graduada em Direito, professora universitária?
Logo que se casaram, foram morar em casa dos pais da esposa. Na época, não era fácil casa para alugar, e os apartamentos ainda não tinham o prestígio adquirido com o tempo. A onda de empréstimo para a construção ainda não se tinha iniciado. Dois quartos foram destinados ao casal. Um deles, bem amplo, para a biblioteca. A importância dos livros era grande, como sempre continuou sendo, no decorrer dos anos.
A integração de Lourenço com os familiares da esposa deu-se naturalmente e muito bem. O moço austero, inteligente, cumpridor do dever, estava dentro dos padrões da família. Uma pequena diferença: o Lourenço não era muito preocupado com requintes sociais: natural, espontâneo, era ele mesmo. E toda a família o compreendia. Fez muita amizade com o cunhado José Carlos, apreciava seu valor intelectual e a maneira fina e elegante de resolver os problemas, fossem de idéias, fatos ou situações. Ambos formados em Direito, tinham mais vocação literária, artística do que jurídica. As belezas jurídicas, enquanto teoria, sabiam degustar, mas no momento em que se envolviam na prática, na aplicação, o cotidiano já não os atraía muito, e assim Lourenço e José Carlos foram mesmo grandes Professores de Letras, cada um a seu modo, cada um dentro de seu feitio.
Um ano depois de conviver na família, o novo casal já com a filha recém-nascida, alugou casa. Quem deixava a casa, porque ia residir no Rio, era também um amigo e um intelectual admirável, Cyro dos Anjos. Assim a mudança se fez para um ninho de vida espiritual. Eram livros que saíam e livros que chegavam. Eram cogitações intelectuais, que ficavam no recanto de casa, e eram cogitações, que chegavam e que se fundiam nos bons ares da nova residência. Montar a casa não era fácil antigamente. Hoje será? A esposa, mais prática, pensa nos móveis, nos colchões, nas panelas, e o Lourenço sai para as primeiras compras e traz logo, no carro, o quê?: um quadro grande para a sala de jantar, e arranja prego e martelo, e sobe numa escada e coloca o quadro na parede. Que quadro é esse?: uma cópia célebre, não pude identificar o autor; a cena é da Idade Média: castelo feudal, uma cruz luminosa na parte da frente, um rio que corre, árvores às margens, algumas elevações de terra, pedras enormes anunciando rochas, e, numa delas, um cavalo branco bem arreado e um cavaleiro bem montado, um jogral, e a suposição de que recitava ou cantava para alguma donzela encantada ...

Uma visita significativa
Nas conversas com a noiva o Lourenço se referiu com respeito e admiração ao filólogo Pedro Augusto Pinto, de quem adquirira todos os livros. Desta vez, ambos se surpreenderam. Ela conhecia pessoalmente o doutor Pedro, também médico, catedrático de Farmacologia da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, que dividia os interesses do campo médico com os dos estudos da língua. Essa função se verifica bem no seu Dicionário de termos médicos . Ao lado de livros com lições de Farmacologia Clínica e Bio-Experimental, de noções de Farmácia Galênica, de propriedade dos corpos, e tantos outros no gênero, Pedro Pinto publicara: Dicionários de sinônimos, Locuções e Expressões na Réplica de Rui Barbosa, Fatos da Língua; Brasileirismos e Supostos Brasileirismos em Os Sertões de Euclides da Cunha, Estudos de Etimologias, Nugas e rusgas na linguagem; A língua materna. Em edições sucessivas.
Lourenço estava bem familiarizado com os livros de Pedro Pinto no setor de língua. Hoje, na sua biblioteca, localizo a Revista Filológica, de abril-maio de 1955, cujo redator-chefe era Serafim da Silva Neto, que traz um artigo de Pedro Pinto com o título “Linguagem Científica”. Está claro que o interesse de Lourenço era toda a revista, mas o artigo tinha um significado todo especial.
O jovem Pedro trabalhara algum tempo na farmácia do pai da esposa do Lourenço. E se revelara muito inteligente e interessado na leitura em geral e na análise das receitas médicas que iam sendo aviadas na farmácia. Um dia, o jovem Pedro Pinto, que era muito querido de toda a família Lisboa, disse que iria para o Rio estudar. E foi, fez seus vestibulares, estudou Medicina, formou-se, fez con cursos de cátedra com defesa de tese e se projetou na Capital.
Para o Lourenço o que interessava mais era o filólogo, mas sentia curiosidade, interesse pela pessoa do Mestre. E assim quando se casou, e foi passar a lua de mel no Rio, quis conhecer pessoalmente o seu colega mais velho e de nomeada. É bom lembrar, aqui, o encontro de dois filólogos ou dois lingüistas. Com que interesse mantiveram altas cogitações filológicas ou lingüísticas. As esposas, a de Pedro Pinto e a de Lourenço, ouviam encantadas aquela conversa de alto nível e pressentiam nos dois o amor pela nossa língua.
Às despedidas, o Pedro Pinto, como numa auto análise, advertiu a recém-casada: "Não estranhe se seu marido vier a ter algumas exigências em casa, vier a preocupar-se com especificações, a ter mesmo alguma impertinência em minúcias, coisa própria de filólogos. Compreenda isso sempre."
Era então o ano de 1936. Hoje, percorrendo as estantes de Lourenço, encontro a sétima edição do Dicionário de termos médicos, 1958, com esta dedicatória: "Ao muito estimado casal Alaíde Lisboa de Oliveira e José Lourenço de Oliveira, lembrança carinhosa de Pedro A. Pinto."

Um encontro
No dia seguinte da chegada ao Rio de Janeiro, o casal foi ao Teatro Municipal. Saíram os dois do teatro e seguiram pela avenida Rio Branco. Naquele tempo as casas de café, de chope, de chá mantinham cadeiras e mesinhas na calçada. E ali os fregueses, jornalistas, intelectuais, políticos, conversavam a bom conversar. O casal vinha passando por um desses restaurantes, e, lá de uma mesa, levanta-se um jovem e vem ao encontro de Lourenço: "Lourenço!" Lourenço: "Tancredo!". Ambos: "Que prazer!". Era São João del Rei que se encontrava. E Lourenço falou ao Tancredo Neves: "Deixa eu te apresentar Alaíde Lisboa, minha esposa." Pela primeira vez ela se identificou como esposa de Lourenço.
Lembraram que, em 1926, a 8 de dezembro, inaugurou-se em São João del Rei uma Exposição de Pintura. Foi orador, no ato inaugural, o Professor Lourenço, que acabara de completar vinte e dois anos. Entre os setecentos e dezesseis sanjoanenses que assinaram a ata de inauguração da exposição, lá está a assinatura de Tancredo de Almeida Neves, o jovem de dezessete anos, já interessado em Arte, e que, mais tarde, viria a criar a Secretaria de Cultura de Minas Gerais e projetar o Ministério da Cultura do País.
In: Oliveira, Alaíde Lisboa de. José Lourenço de Oliveira – Educador. Belo Horizonte: Cuatiara, 1996, p. 36-48.

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